Atualizações na Lei de Responsabilidade Fiscal: Mudanças na Regra de Ouro
Análise Detalhada das Alterações Promovidas pela Lei Complementar nº 212/2025
A Lei Complementar nº 212, de 13 de janeiro de 2025, que instituiu o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), trouxe importantes modificações à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000). Uma das alterações mais significativas diz respeito à chamada "regra de ouro" das finanças públicas, contemplada no artigo 35 da LRF. Este artigo analisa especificamente as mudanças introduzidas no Art. 35, §1º, inciso I, suas implicações e seus potenciais impactos para a gestão fiscal dos entes federativos.
A Regra de Ouro Original da LRF
A regra de ouro das finanças públicas, em sua concepção original na LRF, tinha como fundamento a sustentabilidade fiscal de longo prazo, buscando evitar o endividamento para custear despesas correntes. O artigo 35 da LRF veda a realização de operações de crédito entre entes da Federação, inclusive por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal.
Especificamente, o §1º, inciso I, em sua redação original, estabelecia a proibição de:
"I - financiar, direta ou indiretamente, despesas correntes;"
Esta vedação constituía um pilar fundamental da responsabilidade fiscal, visando garantir que o endividamento público fosse direcionado exclusivamente para despesas de capital, como investimentos em infraestrutura e aquisição de equipamentos. Tal princípio buscava evitar o círculo vicioso de endividamento para custear gastos de natureza continuada, como despesas com pessoal e custeio da máquina pública.
A Nova Redação Introduzida pela LC 212/2025
A LC 212/2025 trouxe uma alteração significativa no §1º, inciso I do artigo 35 da LRF, que passou a ter a seguinte redação:
"I - financiar, direta ou indiretamente, despesas correntes, ressalvadas as operações destinadas a financiar a estruturação de projetos ou a garantir contraprestações em contratos de parceria público-privada ou de concessão;"
A nova redação mantém a proibição geral de financiamento de despesas correntes, mas introduz exceções específicas, permitindo operações de crédito entre entes federativos quando destinadas a:
Financiar a estruturação de projetos
Garantir contraprestações em contratos de parceria público-privada (PPP)
Garantir contraprestações em contratos de concessão
Análise da Alteração
Contextualização
Esta alteração deve ser compreendida no contexto mais amplo da necessidade de viabilizar investimentos em infraestrutura e serviços públicos, especialmente em um cenário de restrições fiscais. A estruturação de projetos, particularmente aqueles que envolvem parcerias com o setor privado, frequentemente exige recursos significativos para estudos técnicos, econômicos e jurídicos prévios.
Da mesma forma, as contraprestações públicas em contratos de PPP e concessão constituem compromissos de longo prazo que, apesar de classificadas contabilmente como despesas correntes, estão intrinsecamente ligadas à aquisição de ativos de infraestrutura ou à prestação de serviços essenciais à população.
Implicações Técnicas
Do ponto de vista técnico, a alteração reconhece a natureza híbrida de certos gastos públicos, que não se enquadram perfeitamente na dicotomia tradicional entre despesas correntes e de capital.
A modificação permite, portanto, maior flexibilidade na estruturação financeira de projetos complexos, viabilizando arranjos que anteriormente poderiam esbarrar na vedação absoluta da regra de ouro.
Impactos Potenciais
Esta flexibilização da regra de ouro pode ter impactos significativos na gestão fiscal dos entes federativos:
Viabilização de projetos complexos: A possibilidade de financiar estudos de estruturação de projetos pode destravar investimentos que dependem de análises técnicas, econômicas e jurídicas sofisticadas.
Ampliação das parcerias público-privadas: Ao permitir o financiamento de contraprestações, a alteração pode incentivar a utilização de modelos de PPP, especialmente em setores que exigem investimentos vultosos e gestão eficiente.
Compartilhamento de riscos: Os contratos de PPP e concessão permitem uma alocação mais eficiente de riscos entre o setor público e privado, potencialmente reduzindo o custo total dos projetos.
Flexibilidade orçamentária: A flexibilização permite maior adaptabilidade na gestão orçamentária e financeira, especialmente para projetos de longo prazo.
Desafios e Considerações para Gestores Públicos
Apesar dos potenciais benefícios, a alteração na regra de ouro apresenta desafios que demandam atenção dos gestores públicos:
1. Necessidade de Planejamento Rigoroso
A flexibilização não deve ser vista como uma carta branca para o endividamento indiscriminado. É fundamental que os entes federativos realizem um planejamento rigoroso, assegurando que os projetos financiados por meio das exceções à regra de ouro apresentem viabilidade técnica e econômica.
2. Transparência nas Operações
As operações amparadas pelas novas exceções devem ser caracterizadas por total transparência, permitindo o controle social e institucional sobre sua real destinação e impacto nas finanças públicas.
3. Avaliação de Sustentabilidade de Longo Prazo
Os compromissos assumidos em contratos de PPP e concessão têm natureza de longo prazo, impactando múltiplos exercícios financeiros. É essencial que os gestores avaliem cuidadosamente a capacidade de pagamento futuro do ente, evitando comprometer excessivamente as receitas de gestões subsequentes.
4. Capacitação Técnica
A estruturação de projetos complexos e a gestão de contratos de PPP e concessão exigem capacitação técnica específica. Os entes federativos devem investir na formação de equipes qualificadas para maximizar os benefícios das novas possibilidades.
Considerações Finais
A alteração na regra de ouro introduzida pela LC 212/2025 representa uma evolução no arcabouço fiscal brasileiro, buscando equilibrar a necessidade de disciplina fiscal com a viabilização de investimentos essenciais para o desenvolvimento.
Ao permitir exceções pontuais à vedação de financiamento de despesas correntes, o legislador reconheceu a complexidade dos arranjos contratuais modernos e a necessidade de flexibilidade para viabilizar parcerias com o setor privado.
No entanto, o sucesso desta flexibilização dependerá fundamentalmente da responsabilidade com que os gestores públicos utilizarão as novas possibilidades, mantendo o compromisso com a sustentabilidade fiscal de longo prazo que constitui o espírito original da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Para os profissionais que atuam na administração pública, especialmente nas áreas de contabilidade, auditoria, controle interno, orçamento e finanças, compreender estas mudanças é essencial para garantir tanto o cumprimento das normas quanto o aproveitamento das oportunidades que elas representam para a melhoria da gestão pública e dos serviços prestados à população.